28/01/2019
Por Celso Alvarez Cáccamo
Professor de Linguística Geral, Departamento de Letras, Faculdade de Filologia, Universidade da Corunha
28 de janeiro de 2019
O problema da análise do discurso com perspetiva crítica são três: 1) que só é análise; 2) que não se sabe bem a respeito de que é crítica; 3) que analisa o discurso. Por exemplo: num foro de debate da associação EDiSo, a pessoa sócia A apresenta um texto que é um informe médico sobre os danos causados declaradamente pola ação da polícia espanhola no 1 de outubro de 2017 durante a celebração do referêndum de independência declarado ilegal polo Tribunal Constitucional de Espanha. A enquadra isto como eventos dentro dum "Estado sin ley". A pessoa sócia B reage com amostras de textos argumentativos contra o liderado independentista catalão e contra o independentismo em geral. Evidentemente, o texto de A não têm nada a ver com os de B, mas só são signos (índices) de ideologias políticas incompatíveis. A ligação entre os atos de A apresentar textos e B apresentar contratextos é profundamente difícil de estabelecer, porque não é textual, nem discursiva: é política, no sentido de agentiva. A e B estão em campos políticos antagónicos. Porém, a ilusão da análise de discurso faz ambos agentes compartilharem o campo onde os textos são enarvorados. Por que? Como é isto possível? Quais são as condições de possibilidade disto, não dos textos originários em si?
Evidentemente, por definição, EDiSo só gera mimese de produção, como toda empresa académica: simulacro de valor. EDiSo faz parte do campo de congenialidade onde coexistem as posições políticas daqueles que querem (e por enquanto conseguem) impor questões cruciais como é o seu próprio Estado, querendo fazer crer que é o Estado nacional doutros países, com as daquelas pessoas que precisamente resistem contra isso. E em EDiSo coexistem também, entrecruzadas com as anteriores, ideologias liberais (de mercado capitalista) com ideologias anti-capitalistas. Como é possível que coexistam tais posições e interesses estruturalmente e objetivamente encontrados?
É possível porque, por definição, nada do que faz EDiSo ameaça, socava ou rilha (co-rrói) os seus próprios fundamentos. EDiSo é um pedaço do campo de reprodução da pseudomercantilização do valor cognitivo/académico, um campo de teorização do objeto "discurso" para a reprodução de posições estruturais compatíveis (se não coadjuvantes) com a acumulação capitalista. EDiSo responde às mesmas lógicas de acumulação e apresenta as mesmas dinâmicas de criação, preservação ou contestação das posições de campo que o campo económico, o mercado.
O que nos une é um habitus de campo, isto é, a disposição para a prática dum dado tipo de identidade que Gabriela Prego fertilmente chamou já há tempo "identidade sócio-discursiva": não apenas dizermos palavras, nem 'fazermos-sermos' com atos sociais, mas projetarmo-nos no discurso como agentes de âmbitos institucionalizados: de campo (Prácticas discursivas, redes sociales e identidades en Bergantiños [Galicia]: La interacción comunicativa en una situación de cambio sociolingüístico. Tese de Doutoramento. Departamento de Galego-Português, Francês e Linguística, Universidade da Corunha, 2000). Neste sentido como praticantes da identidade sócio-discursiva "analistas do discurso", somos profundamente inócuas, inócuos. Entranhavelmente inofensivxs.
E substancialmente desnecessárixs para o capital, não esqueçamos: nem úteis nem inúteis, mas simultaneamente toleráveis e prescindíveis. Excederia imaginar que somos úteis para o projeto de acumulação; apenas, no sentido em que o discurso que geramos pudesse, remotamente (sob otras condições muito divergentes), estar enchido doutros conteúdos que, esses sim, pudessem corroer no projeto do capital. Mas é extremamente duvidoso que isto possa acontecer agora em qualquer fragmento do campo académico europeu, porque, por imperativo e por convicção, o campo não se está a orientar sistematicamente para a superação da acumulação, mas para o contrário.
A análise do discurso, e crítica, só pode incidir para a superação da acumulação na medida em que deixar de ser prática de campo e de classe; na medida em que os seus protocolos de habitus forem substituídos por protocolos de ação transformadora, à la Marx ou Voloshinov; em definitivo: na medida, claro, em que nos desintegremos como campo, que é inerentemente o tipo de âmbito onde se gera valor económico ou pseudovalor académico. E isto só seria possível num novo tipo de gramsciana "aliança das forças do trabalho e a cultura", transversalizada, des-localizada (do espaço da para-produção académica ao espaço da produção de valor, onde impera a sua Lei que há que superar), internamente horizontal e profundamente anti-patriarcal e anti-hagiográfica.
Claro que isso não poderia ser EDiSo nem associação semelhante, sob qualquer nome, nem muito menos um lakoffiano think-tank reformista, mas uma espécie de brigadas do discurso cujo nome está por construir e cuja ação serviria, polo menos, para aproximar mutuamente a pulsão transformadora, a prática como materialização do desejo, e o tempo que nos restar de biografia.
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