01/02/2015
Por Emanuel da Silva
Pesquisador de Pós-Doutorado, Departamento de Línguas, Universidade de Jyväskylä, Finlândia
Quando fui convidado a escrever um texto sobre os conceitos de “discurso, identidade e comunidade” fiquei muito animado porque tenho questionado este triunvirato desde criança – nascido e criado em Toronto, no Canadá, filho de pais de Portugal continental – e eu sempre quis saber como a língua era usada para perceber o que é ser português, canadiano, ou sei lá o que for. Ao longo dos anos, comecei a ver que havia diferentes maneiras de ser português, e a ouvir diferentes maneiras de falar português, enquanto os discursos dos políticos vindos de Portugal e dos líderes comunitários em Toronto eram sempre os mesmos: “somos todos portugueses!”, “devemos todos falar português e ter orgulho de ser português!”
Eu cresci a pensar que isto era normal, que era assim que os grupos de imigrantes e as comunidades diaspóricas mantinham a coesão social e a unidade. Foi só quando comecei a notar que certas maneiras de ser e de falar tinham consequências é que eu soube que tinha uma questão de desigualdade sociolinguística que merecia ser estudada. A resposta discursiva normativa aos debates sobre identidade (ou qualquer outra forma de categorização social) de privilegiar a similaridade acima da diferença, a uniformidade acima da diversidade, é quase tão problemática como uma resposta pós-estruturalista de discursos que privilegiam a diversidade e a diferença sem também questionar as relações de poder estrutural que limitam o que é incluido e excluido destes debates, e por quê. Se é o apelo de Brubaker e Cooper para pensar “além da identidade” (Beyond "identity". Theory and Society. 29:1-47. 2000) ou o apelo de Block para “o realismo crítico” (Social class in applied linguistics. New York: Routledge. 2014), as nossas análises críticas do discurso devem cada vez mais adicionar uma análise materialista com dimensões políticas, econômicas e históricas.
O argumento central que motiva a minha pesquisa na sociolinguística crítica é que a língua, assim como conceitos sociais de identidade e de “comunidade”, são conjuntos de recursos simbólicos e materiais que revelam e definem posicionamentos e estruturas sociais no contexto de um “mercado” (seguindo o trabalho de Pierre Bourdieu, Anthony Giddens, e Monica Heller, entre outros). As perguntas que direcionam o meu trabalho etnográfico sobre ideologias linguísticas são as seguintes: quem é que define os recursos linguísticos e sociais? Como? Por quê? E com quais consequências para quem?
Os discursos dominantes do (trans)nacionalismo português e do multiculturalismo canadiano fazem da língua portuguesa o elemento central da identidade portuguesa em Toronto. Desde a queda do império colonial português (onde a violência linguística cruzou com a violência fisica), a língua portuguesa e as comunidades da diáspora portuguesa têm sido posicionadas como os elementos mais dominantes da narrativa transnacional do país (o que persiste no mito de retorno e na indústria da saudade, onde, como lembra-nos Pessoa, “a minha pátria é minha língua”). Mesmo se a ideologia do Estado-Nação (que equipara uma nação a um povo e a uma língua) defronta-se com o rompimento e o reposicionamento de fronteiras geográficas e sociais, ela ainda permanece como maneira de organizar a realidade social e de dividir recursos. Na história do estado português, as ilhas dos Açores têm sido isoladas desde o século XV, não só geograficamente mas também em termos econômicos, sociais e políticos (em Toronto ouve-se frequentamente uma distinção entre “Portugal” e os Açores).
Muitos açorianos sentem-se e são vistos por muitos continentais como cidadãos de segunda classe. Esta dominação simbólica é destacada pelas ideologias estigmatizantes de língua e de identidade que marcam a maior variante portuguesa dos Açores – o Micaelense que tem diferenças distintivas do chamado português padrão (e continental) – como “inculta” e “incompreensível”, e marcam, por extensão, os açorianos como “estúpidos” e “inferiores” em relação aos continentais. Durante séculos, o contato entre os Açores e Portugal continental era tão escasso que estes estereótipos consolidaram-se, e foi principalmente através da emigração portuguesa que açorianos e continentais encontraram-se e viveram juntos nos mesmos espaços – confrontando os discursos naturalizados no dia a dia.
Com cerca de 500 000 portugueses e descendentes no Canadá, e 200 000 na área da cidade de Toronto, a comunidade portuguesa tem um certo peso demográfico. Em Toronto quase 70% da comunidade luso-canadiana é de origem açoriana – principalemente das ilhas de São Miguel e da Terceira. Podíamos esperar que este peso demográfico se tornasse em poder no mercado português local, mas isto não é o caso. Em grande parte, a maioria da “comunidade” tem sido silenciada e excluida dos espaços dominantes que produzem os discursos legítimos de portugalidade (a mídia étnica, as escolas de língua portuguesa, as associações culturais, certas empresas étnicas e certas instituições políticas luso-canadianas) porque o capital sociolinguístico açoriano é considerado diferente e inferior à norma continental. Os filhos destes imigrantes, nascidos no Canadá, também são marginalizados, mesmo se eles são situados como os herdeiros e os futuros investidores neste mercado, porque o discurso dominante continua a valorizar o nacionalismo e o tradicionalismo português (e.g., o folclore, a história conquistadora, as práticas religiosas, a divisão de gênero no trabalho), e o monolinguismo (vs. o bi- ou multilinguismo porque o inglês é considerado uma ameaça ao uso do português).
A estruturação deste mercado existe não só por causa dos discursos e investimentos transnacionais do estado português, mas também por causa dos discursos homogeneizadores da política de multiculturalismo canadiano. O discurso dominante sobre esta política é que ela permite aos imigrantes e aos seus descendentes de serem canadianos e de manterem as outras culturas e línguas deles. A política de multiculturalismo também ajudou a desestabilizar o antigo biculturalismo colonial do país (inglês-francês, o que apoiava o separatismo do Québec) e a legitimar as políticas económicas que controlavam e reproduziam a diversidade etnolinguística ao (des)autorizar quem podia entrar no país, quando, onde, e com qual acesso a certos tipos de trabalho. A institucionalização do multiculturalismo forneceu as condições discursivas e materiais de organizar estas diferenças em espaços homogeneizantes e separados do mainstream canadiano em mercados etnolinguísticos através da criação de bairros étnicos e classistas, com instituições dominantes (descritas acima).
Isto fomentou a criação de espaços contestados onde certas pessoas definiram o que é ser português, chinês, paquistanês, ou qualquer outra etnia, a fim de representar essa “comunidade” em interações com o estado canadiano e em competição com outros grupos étnicos. Assim, uma “elite étnica” organizou recursos importantes (como empregos, investimentos, serviços e estatutos sociais) em mercados etnolinguísticos e pôs de lado divisões internas e muita heterogeneidade a fim de retratar uma frente “unida”. Portanto, as divisões internas entre açorianos e continentais foram essencializadas e as construções legítimas de portugalidade em Toronto naturalizaram Portugal continental e o português (continental) padrão como a norma. Os açorianos não se encontraram entre os primeiros “líderes étnicos” no início da estruturação do mercado português, e hoje os descendentes de açorianos encontram-se em grande parte sub-representados nos espaços tradicionalmente “portugueses”. Sendo assim, apesar de um discurso festejando a diversidade, a política de multiculturalismo canadiano legitima uma homogeneidade falsa e, muitas vezes, ignora e reproduz divisões internas e desigualdade.
Os grandes desafios do mercado português de Toronto mostram os limites de uma aderência rígida ao discurso nacionalista português frente às mudanças socio-económicas e sociolinguísticas. O coração físico do mercado português no bairro etnico de “Little Portugal”, de classe trabalhadora, está a mudar com a gentrificação: a partida de muitas famílias e empresas portuguesas e a chegada de “canadianos” de classe média e alta a construirem casas novas e novos pontos comerciais. Também o envelhecimento demográfico da população que consumia mais a portugalidade nas instituições portuguesas ameaça o futuro delas se não houver uma substituição das gerações. Muitas associações culturais já fecharam. Até o único noticiário em português na televisão pública já fechou. Na minha opinião, uma das dificuldades que estas organizações não conseguiram ultrapassar foi a relutância de funcionarem de maneira bilingue (português-inglês). A juventude e muitos adultos luso-canadianos não têm a competência monolingue e monocultural para poder participar à maneira antiga, então eles investem em outros espaços sociais e praticam a portugalidade de maneira mais privada ou em espaços onde não há tanto escrutínio linguístico (novos restaurantes portugueses, equipas de futebol). Ainda há alguns jovens com os recursos linguísticos e culturais em português para reproduzir a antiga estrutura do mercado, e para tentar mudá-la à maneira deles, mas eles são uma minoria.
A presença mais recente de outros lusófonos vindos de ex-colónias portuguesas como Brasil, Angola e Moçambique complica ainda mais o espaço etnolinguístico do mercado português local porque reúne pessoas, povos, e histórias que têm estado separados há muito tempo. Apesar do discurso de unidade numa “língua comum”, a realidade no espaço social revela diferentes mercados divididos ao longo de linhas etno-raciais e linguísticas, entre brasileiros, africanos e portugueses. Mesmo entre os portugueses existe uma nova estrutura institucional que começou no início do século XXI. Investimentos pelo Governo Regional dos Açores na diáspora açoriana estão a mobilizar a açorianidade como uma identidade pós-nacional (com iniciativas bilingues), contornando o Governo Nacional e a antiga estrutura institucional da diáspora portuguesa que tem recebido menos apoio devido à última crise econômica, apesar do papel discursivo e financeiro da diáspora portuguesa a “ajudar a pátria”. No fim, o mercado português de Toronto revela uma “comunidade” em movimento com diferentes discursos a posicionar atores sociais para tentar definir e controlar a circulação de recursos simbólicos e materiais.
Se este panorama é digno de confiança, embora seja admitidamente superficial e apenas mais um outro discurso a justapor, porque é que a elite étnica deste mercado local tem sido tão relutante em mudar? Se o (meu) objetivo final é de ter mais equidade social e transparência na produção, na circulação e no proveito de recursos e discursos (nesta e noutras comunidades), será que é possível reconciliar os interesses concorrentes e conflituosos de tantos mercados que se sobrepõem? Como é que uma análise micro de um mercado específico como este pode facilitar ou prejudicar uma análise macro das mudanças em curso pelo mundo todo? Ou será que a dicotomia micro/macro, assim como local/global, não é tão útil nos contextos de mudança de hoje como já pode ter sido no passado? Será que este exemplo promove uma compreensão do glocal?
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