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As decisões políticas e a morte das pessoas - Celso Álvarez Cáccamo

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01/09/2013

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As decisões políticas e a morte das pessoas - Celso Álvarez Cáccamo

Por Celso Alvarez Cáccamo
Professor de Linguística Geral, Departamento de Galego-Português, Francês e Linguística, Universidade da Corunha

Os factos são cruéis, e provavelmente conhecidos. Mas, polo argumento a desenvolver, e com respeito, devem ser lembrados:

1. Em 24 de julho de 2013, um trem rápido da RENFE (Red Nacional de Ferrocarriles Españoles) procedente de Ourense, na Galiza, descarrilou numa curva perto da entrada à capital, Santiago de Compostela. Morreram, até hoje, 79 pessoas, e dezenas delas ficaram feridas.

2. Tudo indica que o comboio viajava no momento do acidente a uns 190 km/h numa zona onde devia circular a 80 km/h.

3. Tudo indica que o trecho da curva e alguns quilómetros prévios não dispunham de nenhum de dous possíveis sistemas de segurança avançados (ERTMS e ASFA Digital), qualquer dos quais teria detido o comboio ou reduzido a sua velocidade automaticamente, evitando o acidente. O sistema de segurança utilizado era ASFA Analógico, que deixa o controlo da velocidade exclusivamente nas mãos do maquinista ("O tramo do accidente tiña o sistema de seguridade analóxico de hai medio século", Praza Pública, 28 de julho de 2013; recuperado em 28-07-2013, 20 h. 43 m.; "El tramo del accidente de Santiago tenía el sistema de seguridad analógico de hace medio siglo", eldiario.es, 28 de julho de 2013; recuperado em 28-07-2013, 20 h. 44 m.)

4. O resto da via rápida Madrid - Compostela dispõe de algum dos sistemas avançados de controlo.

Em resumo, nalguma altura da construção desse trecho de via houve uma decisão, um ato discursivo dalgum tipo, no sentido de não instalar nenhum dos sistemas avançados de controlo automático. Algumas informações apontam — mas não está documentado — que, com efeito, se solicitara a instalação destes sistemas de segurança. Se assim for, qualquer decisão posterior seria resposta a esta petição. Seja como for, estas circunstâncias não mudam o essencial da centralidade do ato de decisão. Por feito ou por omissão, houve um ato ou série de atos discursivos (orais, escritos e/ou formulaicos) que estabeleciam ou mantinham um sistema de controlo ineficiente, o ASFA Analógico. Mas no regime político da economia e da técnica, qualquer decisão técnica ou económica e também política. E, na cadeia de discurso em que consiste a vida política, os atos engranzam-se com circunstâncias que — procuraremos ver — não são alheias a um discurso que é amiúde concebido, erradamente, como realização estéril, asséptica e simplesmente maquinal de "significados".

A cadeia discursiva que levou e que inscreveu o ato de decisão é praticamente irrecuperável. Tipicamente, quando um ato político acarreta consequências vistas socialmente como positivas, a sua autoria é reclamada explicitamente por agentes individuais ou teoricamente representativos do corpo social. Declara-se, por exemplo, “O Governo / O Presidente aumenta o subsídio de desemprego”, não “Funcionários/as economistas do Ministério de Fazenda recomendam em informes para o governo uma suba do subsídio de desemprego”. Porém, nos atos que acarretam consequências negativas costuma dar-se o que comumente se chama “diluição das responsabilidades”. O processo de decisão é fragmentado em decisões consecutivas e entrelaçadas por vários agentes, decisões que, além, são contexto umas das outras. Rara vez há uma assunção plena de uma decisão negativa (e, portanto, da responsabilidade) por parte de um só agente. É o processo judicial — em si também uma cadeia discursiva — que deve “dirimir as responsabilidades” e atribuir as cargas da decisão. Em princípio, decisões com consequências positivas e com consequências negativas funcionam estritamente igual em termos de estimação das informações prévias e do seu caráter realizativo. Mas é o jogo de autorias que balança para vários lados, em função dos custos de imagem social e até penais para os diversos agentes.

Na dura experiência social de eventos como o acidente de Compostela — ou de acidentes laborais, ou da perda de visão de uma cidadã por uma bala de goma atirada por um polícia, ou do derrubamento dum prédio com trabalhadoras numa oficina têxtil ilegal — é onde mais claramente se percebe tanto a natureza política dos discursos que subjazem a estes factos quanto a dificuldade de recuperar a cadeia da sua produção e circulação: textos (diretivos e realizativos) que derivam o seu sentido doutros textos de nível superior, ambiguidades e contradições internas e intertextuais, vozes que falam por outras vozes, identidades ou roles individuais que encarnam ou representam órgãos coletivos, diferentes autores/as com diferentes posições que ré-entextualizam os textos, etc. A análise, por exemplo, raramente tem acesso a todas estas fases da cadeia de produção (também às “informais”, ou “privadas”), e apenas são os textos finais que emergem nos discursos públicos e oficiais, como fósseis em estratos assinalando fitos duma história muito mais complexa e longa.

Mas sim que existem outros dados do social que podem ajudar a triangular a análise e a interpretação. Os discursos e os próprios factos sociais (nomeadamente, a própria constatação da trajetória do modo dominante de produção atual, com as políticas de desmantelamento do público) manifestam, de maneiras ainda pouco conhecidas, uma dimensão coletiva ideacional que pode ser denominada de vários modos: ideologia, epistemologia, filosofia, visão do mundo. Qualquer destas etiquetas remete à organização das representações das ordens do mundo: “naturais”, naturalizadas ou contestadas, mas mediantes, em qualquer caso, entre a realidade e a experimentação dessa realidade. Uma decisão política, manifestada em discurso, é, portanto, um icebergue visível que sobressai da ampla base — por vezes terrífica — que o sustém por pura coerção física, por hegemónica “saturação de consciência”, ou por ambas em diversos graus.

Que por os poderes públicos não gastarem uma dada quantidade de dinheiro morressem dezenas de pessoas reclama, polo menos, uma interrogação sobre a base que sustém essa decisão. É preciso, na linha do amplo trabalho que durante décadas tem destacado a articulação entre o material e o simbólico (Valentin Volóshinov, Antonio Gramsci, Pierre Bourdieu, Ferruccio Rossi-Landi), e daquele que enfatiza a construção social e setorial do discurso (Teun A. van Dijk), examinar as ideologias, epistemologias ou filosofias dos atributos concorrentes a este evento. Por exemplo,

  • ideologias da causalidade e da agencialidade: se uma pessoa não faz um ato (não detém um trem), e não existe um sistema alternativo (de freagem) que o faça, quem ou que instância é responsável da consequência dum ato posterior (o acidente)?; que o quem o produziu?; em que medida são outros agentes responsáveis?;
  • ideologias, epistemologias e filosofias da probabilidade, do risco e do benefício: quais são as hipóteses de que a decisão de não fazer algo (investir uma dada quantidade de dinheiro) afete a probabilidade de uma outra cousa (um terrível acidente)?; até onde chega legitimamente o limite do risco nas decisões?;
  • e, sobretudo, ideologias do valor, como propriedade geral de troca e convertibilidade do material, mas também entre o material e o simbólico: qual é a relação entre o valor monetário e um dado número de vidas humanas?; em que tipo de valor se converte ou pode converter o ato de discurso regulatório “Não procede a instalação dum sistema de segurança”?; que ordem económica e social ancora legitimamente o carácter diretivo desse ato?

Com efeito, no “sistema moderno de produção de mercadorias”, como Bruno Lamas tem etiquetado o capitalismo e formas concomitantes (“O paradoxo da nova escravatura global e os pressupostos cegos da ideologia anti-escravatura hoje”, (in)visível edição um, outubro 2012), um ato discursivo regulatório, diretivo, de amplitude social, injeta intrinsecamente o valor não só das mercadorias e serviços comumente vistos como tais, mas também o das pessoas já convertidas em mercadorias, na crescente “mercadoriza[ção] da totalidade do Ser social e individual” (“...commodify the totality of social and individual Being”, Phil Graham, 2002, “Hypercapitalism: language, new media and social perceptions of value”, Discourse & Society 13(2), 227-249; citação da p. 31). Assim, brutalmente, uma decisão técnica e económica pode chegar a reduzir o valor real das vidas humanas. Estas vidas (ou mortes), por sua vez, são trocadas polas companhias de seguros em outras cifras trocáveis. Às vezes, e nalguns sistemas ou decisões judiciais, a compensação suficiente toma a forma de valor simbólico, de reconhecimento social da perda. E, penalmente, a própria decisão sobre uma questão técnica pode trocar-se por anos de liberdade dos seus agentes produtores.

No regime político da economia e do valor, impera, de maneira inelutável, o valor de troca  entre o material e o simbólico, entre o individual e o social, entre o humano e o técnico. Uma consequência pavorosa desta constatação é que o que chega a construir-se a posteriori como um possível “erro” de decisão política (não investir 14.000 euros num sistema de segurança ferroviária) é na realidade a manifestação da eficiência da própria lógica do benefício e do risco. Porque no capitalismo de casino, por definição, a lógica da probabilidade e do risco nunca erra. E as decisões baseadas em probabilidades são, exatamente, isso: cálculos rigorosos sobre o risco assumível polos gestores e possuidores do poder. Nenhuma ordem económica baseada no benefício tem vocação de suicídio, e o Discurso que o sistema produz é, portanto, a manifestação crua e nua dessa lógica e regime. Nem a sua interpretação é necessária, porque, no mínimo que observemos os outros signos do social, o conteúdo real do discurso (a decisão, o decreto, a lei, a declaração oficial) se desvenda a si próprio:

“La polémica sobre la necesidad de balizas de velocidad en el tramo, reclamadas ahora por los maquinistas, sigue abierta. Nadie cuestiona que ese elemento adicional de seguridad casi blindaría el tramo, pero fuentes de Adif [Administrador de Infraestructuras Ferroviarias] replican que el maquinista tiene que ser responsable de lo que hace en cabina, como un conductor de autobús o un piloto de avión. «Llenar la vía férrea de balizas de velocidad es una inversión carísima, e innecesaria si cada uno hace su trabajo; el que le corresponde y para el que está capacitado».” ("La policía analiza las llamadas de los dos móviles del maquinista", ABC, edição digital, 28 de julho de 2013; recuperada em 28-07-2013, 20h. 27 m.).

Como na transparência discursiva dos estados preparados para as novas invasões coloniais ("Nos próximos dias atacaremos o Iraque", anunciava o presidente dos EUA George Bush em 2003 com impunidade), o discurso do capitalismo tardio lamina até a riqueza da implicatura: ele diz, também com impunidade, que em certos lugares do espaço do mercado, e em certos tempos da sua transformação num princípio totalizador, a vida humana é tão barata que investir demais na sua proteção é ineficiente, desnecessário; existe o trabalho específico regulado para isso; a ordem laboral capacita as pessoas para esse trabalho; e quem o incumpre é culpado. Assim, as palavras de decisão política consagram eficazmente as relações de valor e de trocabilidade entre máquinas, força de trabalho ativa (máquinas orgânicas), e vidas humanas (força de trabalho potencial).

Felizmente, porém, sabemos que o valor é uma propriedade intersubjetiva de desejabilidade social numa dada ordem, não um atributo inerente à matéria, ao social e aos símbolos. E tanto o caráter do valor das vidas, cousas e palavras quanto as lógicas da sua convertibilidade podem ser mudados. Mas, enquanto o império do valor e da sua trocabilidade perdurar, trágicos eventos como o de Compostela continuarão a ser amostras transparentes da terrível base que sustenta o icebergue do discurso.

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